França aprova leis históricas contra o fast fashion e revoluciona a forma como a moda deve lidar com seus resíduos

Publicado em 18 de junho de 2025 às 18:13

A França está oficialmente redesenhando as regras do jogo para o setor da moda. Em resposta à crescente crise ambiental causada pelo consumo excessivo e pelo descarte desenfreado de roupas, o país aprovou uma série de medidas pioneiras que transformam profundamente a forma como marcas produzem, distribuem e lidam com o fim da vida útil das peças que colocam no mercado.

Essas mudanças fazem parte de um movimento mais amplo chamado “Lei Antidesperdício para uma Economia Circular”, aprovada em 2020 e implementada em etapas. Em 2023, boa parte dessas exigências passou a valer de forma obrigatória para o setor têxtil, transformando a França na nação com a legislação ambiental mais rigorosa do mundo quando se trata de moda.

O fim da destruição de roupas novas

Uma das medidas mais emblemáticas é a proibição da destruição de roupas novas que não foram vendidas. Isso inclui tanto a incineração quanto o descarte em aterros. Antes da nova regra, era comum que grandes marcas queimassem estoques inteiros de roupas não vendidas para manter a exclusividade e proteger seus preços no mercado de luxo.

Segundo o governo francês, cerca de 10 mil toneladas de roupas novas eram descartadas todos os anos dessa forma. Agora, as marcas são legalmente obrigadas a redirecionar esse excedente para reciclagem, reuso ou doação a organizações sociais. A multa para quem descumprir pode ultrapassar 15 mil euros por infração.

Essa mudança não é apenas simbólica. Ela altera uma lógica de produção baseada em excesso e desperdício, e força as empresas a lidarem com o que produzem até o fim.

As marcas agora são responsáveis pelo fim da linha

Com a política de “responsabilidade estendida do produtor”, todas as empresas que operam no setor têxtil devem agora criar planos de coleta, logística reversa e destinação dos resíduos gerados por seus produtos.

Ou seja, se uma roupa é descartada por um consumidor, a marca que a produziu é legalmente responsável por garantir que ela seja reciclada, reaproveitada ou corretamente tratada.

Essa nova exigência está incentivando uma mudança no próprio design das peças. As marcas estão sendo pressionadas a criar roupas mais duráveis, reparáveis e compostas por materiais que possam ser reciclados com mais facilidade.

Além disso, elas precisam financiar sistemas de coleta, triagem e reaproveitamento das roupas descartadas. Algumas já começaram a criar programas de recompra e devolução de peças usadas, oferecendo cupons de desconto ou crédito em troca da entrega de roupas antigas.

Transparência ambiental vai para a etiqueta

Outra inovação importante da legislação francesa é a obrigatoriedade de informar o impacto ambiental de cada peça de roupa de forma visível para o consumidor. Isso inclui dados como a quantidade de CO₂ emitido para fabricar a peça, a quantidade de água utilizada no processo, a composição do tecido, a durabilidade estimada do produto, a reciclabilidade do material e até a origem geográfica das matérias-primas.

A ideia é que essas informações estejam disponíveis em etiquetas, QR codes ou plataformas digitais ligadas diretamente à marca, permitindo que o consumidor tome decisões mais conscientes no momento da compra.

Esse sistema de transparência, chamado de “tracciabilité environnementale”, visa combater o greenwashing e expor os verdadeiros custos ambientais por trás de produtos que, muitas vezes, são vendidos com uma imagem de sustentabilidade que não condiz com a realidade.

A plataforma Impact Score, por exemplo, já foi adotada por marcas francesas como Veja, Loom e 1083, e atribui notas com base em critérios sociais, ambientais e de saúde pública.

Exportação de resíduos também foi proibida

Outra mudança de impacto global foi a decisão da França de restringir fortemente a exportação de resíduos têxteis para outros países. Durante décadas, era comum que países europeus enviassem toneladas de roupas descartadas para países africanos ou do sudeste asiático, como Gana, Quênia e Índia.

Nesses países, essas roupas acabam se acumulando em aterros a céu aberto ou sendo queimadas, gerando sérios danos ambientais e sociais. Muitas dessas nações não têm infraestrutura para tratar esse tipo de resíduo, o que transforma o “descarte europeu” em um problema global.

Com a nova legislação, marcas que operam na França devem tratar seus resíduos têxteis internamente, investindo em soluções locais de reaproveitamento e reciclagem.

A medida tem impacto direto na chamada “fast fashion descartável”, cuja lógica de produção se baseia em ciclos curtos, excesso de oferta e baixa qualidade das peças.

Um novo modelo de negócio para a moda

As novas leis francesas não são apenas um conjunto de regras. Elas representam uma mudança de paradigma. A indústria da moda, uma das mais poluentes do mundo, está sendo obrigada a repensar seus métodos de produção, sua comunicação com o consumidor e sua responsabilidade ambiental.

Empresas que antes lucravam com o excesso e o descartável agora precisam operar dentro de uma lógica de circularidade e transparência. Quem não se adaptar poderá enfrentar não só sanções legais, mas também a rejeição de um público cada vez mais informado e consciente.

E o Brasil?

Enquanto a França avança, o Brasil ainda engatinha nesse debate. Não há, atualmente, uma legislação específica que regulamente a responsabilidade das marcas pelo descarte de roupas ou que exija transparência ambiental sobre o impacto de cada peça.

Estima-se que mais de 170 mil toneladas de resíduos têxteis sejam descartadas por ano no Brasil. A maior parte vai parar em lixões ou aterros sanitários sem qualquer forma de reaproveitamento.

Além disso, o país ainda não possui sistemas robustos de coleta seletiva de roupas nem incentivos fiscais para marcas que investem em economia circular. A responsabilidade pelo descarte continua sendo atribuída quase exclusivamente ao consumidor final.

Enquanto isso, o fast fashion segue crescendo, impulsionado por promoções agressivas e campanhas que estimulam o consumo impulsivo.

O exemplo francês pode inspirar o mundo

As medidas adotadas pela França estão influenciando outros países da União Europeia, que já debatem propostas semelhantes. Em março de 2023, a Comissão Europeia anunciou planos para criar um selo ambiental comum para roupas e calçados, além de restringir produtos que não respeitem critérios de durabilidade e reciclabilidade.

A pressão por mudanças já começa a afetar também marcas multinacionais que vendem no mercado francês. Para continuarem operando ali, terão que se adequar às novas regras, o que pode gerar impactos positivos em outras regiões.

É um sinal claro de que a era do consumo desenfreado e sem responsabilidade ambiental está chegando ao fim. O futuro da moda será circular, transparente e regenerativo. E quem insistir em seguir os velhos caminhos pode simplesmente ficar para trás.


Fontes consultadas:

Ministère de la Transition Écologique – Loi Anti-Gaspillage pour une Économie Circulaire
Pavillon de l’Économie Circulaire – ADEME (Agência Francesa de Meio Ambiente)
The Guardian – France to ban destruction of unsold clothes (2019)
Le Monde – Mode, textile et économie circulaire (2023)
WWD – France’s Fashion Law and Its Global Ripple Effects (2024)
Platforme Impact (impact.gouv.fr)
Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT) – Relatório de Resíduos Têxteis no Brasil (2023)

Adicionar comentário

Comentários

Ainda não há comentários.