
Você já parou para pensar para onde vai o lixo que você joga fora? Para muitos, a resposta parece simples: aterros, reciclagem ou coleta local. Mas na realidade, uma grande parte do lixo produzido nos países ricos não é tratado onde foi gerado. Ele é enviado para países do Sul Global, regiões da África, Ásia e América Latina que acabam acumulando toneladas de resíduos que não conseguem processar de forma adequada.
Esse fenômeno não é novo. Tem raízes profundas na história do colonialismo e da desigualdade global. Ele reflete uma lógica econômica e social que permite aos países mais ricos exportar seus problemas ambientais para os mais pobres.
A história da exportação de lixo e sua ligação com o colonialismo
Desde o século XIX, as potências coloniais europeias exploraram recursos naturais e humanos em suas colônias para alimentar o crescimento econômico das metrópoles. Essa relação desigual moldou uma dinâmica global em que as regiões colonizadas eram vistas como fonte de matérias-primas e mercado consumidor, mas também como depósitos de resíduos e externalidades indesejadas.
Quando o colonialismo formal terminou na metade do século XX, muitas dessas estruturas continuaram, agora sob a forma de globalização e relações econômicas desiguais. Os países desenvolvidos mantêm o privilégio de produzir e consumir em grandes volumes, enquanto a responsabilidade pelos resíduos gerados recai sobre nações com menos infraestrutura e poder para resistir.
Esse legado é claro hoje na forma da exportação de resíduos perigosos, plásticos, eletrônicos e têxteis para países do Sul Global. Entre os principais destinos estão Gana, Quênia, Bangladesh, Índia, Vietnã, Nicarágua e o Brasil, onde lixões a céu aberto crescem em extensão e impacto.
As maiores lixeiras do mundo estão no Sul Global
Agbogbloshie, em Gana, é um dos locais mais conhecidos e perigosos. Considerado o maior lixão de resíduos eletrônicos do mundo, milhares de pessoas trabalham desmontando e queimando eletrônicos para extrair metais preciosos, expostos a substâncias altamente tóxicas. A queima do plástico e outros componentes libera dioxinas e metais pesados que contaminam o ar, a água e o solo, causando graves problemas de saúde para os trabalhadores e moradores locais.
Dandora, no Quênia, é um enorme aterro que recebe desde resíduos domésticos até industriais. A falta de infraestrutura para tratamento correto transforma o local em foco de poluição, afetando rios e lençóis freáticos usados pela população local.
La Chureca, na Nicarágua, é um lixão de 30 hectares que foi uma das maiores fontes de trabalho informal para famílias pobres, mas que também expôs essas pessoas a riscos ambientais e sociais enormes.
Em Calcutá e outras cidades da Índia, grandes áreas são usadas como depósitos a céu aberto, onde toneladas de resíduos plásticos e industriais são acumuladas, prejudicando ecossistemas e a saúde pública.
Dados e impacto socioambiental da exportação de lixo
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente estima que aproximadamente 15% do lixo gerado globalmente seja exportado, a maior parte para países do Sul Global. Em termos de resíduos plásticos, apenas cerca de 9% são reciclados globalmente, e grande parte do restante acaba poluindo oceanos ou aterros mal geridos.
No setor têxtil, a indústria produz cerca de 92 milhões de toneladas de resíduos anualmente. Boa parte desses resíduos, principalmente roupas usadas ou sobras da fast fashion, são exportadas para países que não têm condições adequadas de reaproveitamento ou descarte. Isso cria lixões que ameaçam a biodiversidade e a saúde das populações locais.
Além do impacto ambiental, há forte impacto social. Muitas pessoas, incluindo crianças, trabalham em condições precárias nesses lixões, expostas a contaminantes químicos, riscos físicos e jornadas longas, sem qualquer proteção.
A França pioneira no combate à exportação e destruição de resíduos
Diante desse cenário mundial, a França se destacou ao aprovar uma legislação inovadora para enfrentar o desperdício e a exportação de resíduos. A partir de 2022, entrou em vigor a Lei Antidesperdício para uma Economia Circular, que determina que roupas e produtos têxteis não vendidos não podem mais ser destruídos ou exportados para outros países.
Essa lei obriga as marcas a assumirem a responsabilidade pelo ciclo completo de vida de seus produtos, o que inclui a logística reversa, o recolhimento e o tratamento adequado dos resíduos dentro do território francês.
Além disso, a França exige que as marcas informem o impacto ambiental de cada peça, com dados sobre emissão de CO₂, consumo de água, origem dos materiais e reciclabilidade. Esse nível de transparência é pioneiro no mundo e oferece aos consumidores informações claras para escolhas conscientes.
Essa política representa um avanço significativo na luta contra a externalização dos resíduos, obrigando o país a tratar seu próprio lixo e reduzindo a carga ambiental e social que antes era exportada para países mais vulneráveis.
O que o mundo pode aprender com a França
A experiência francesa demonstra que é possível combinar regulamentação rigorosa, responsabilidade empresarial e engajamento do consumidor para enfrentar o desafio dos resíduos.
Além da legislação, o país investe em infraestrutura de reciclagem e programas de educação ambiental, criando um ambiente onde a economia circular pode prosperar.
Outros países europeus já manifestam interesse em seguir o exemplo, e a União Europeia tem discutido a implementação de políticas similares que responsabilizem marcas pelo ciclo de vida dos produtos.
E o Brasil e o resto do mundo?
No Brasil, ainda não existe uma legislação específica que obrigue marcas a cuidarem do destino final dos produtos têxteis ou que proíba a exportação indiscriminada de resíduos para países em desenvolvimento. Atualmente, mais de 170 mil toneladas de roupas são descartadas anualmente no país, muitas vezes em lixões sem tratamento adequado.
O Brasil também é destino e origem de grande parte do lixo têxtil e plástico no Sul Global, com comunidades vulneráveis sofrendo as consequências ambientais e sociais desse descarte.
O caminho para uma mudança estrutural exige políticas públicas mais fortes, maior fiscalização do comércio internacional de resíduos e conscientização social sobre o consumo sustentável.
Por que essa mudança é urgente?
A crise dos resíduos e o modelo linear de produção-consumo-descarte são uma das maiores ameaças ambientais do século XXI. O descarte inadequado polui rios, oceanos, solos e mata a biodiversidade, além de afetar diretamente a saúde humana, especialmente das populações mais vulneráveis.
Exportar o lixo para países mais pobres é uma forma de injustiça ambiental, que perpetua desigualdades históricas e impede o desenvolvimento sustentável global.
Mudanças concretas, como as feitas pela França, são essenciais para garantir que cada país assuma a responsabilidade pelos resíduos que gera, contribuindo para um planeta mais justo e saudável.
Fontes consultadas
Ministério da Transição Ecológica da França – Lei Antidesperdício para uma Economia Circular (2020)
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – Relatório Global de Resíduos (2018)
Global E-waste Monitor 2020 – ONU
Greenpeace International – Exporting Harm Report (2019)
The Guardian – Reportagens sobre lixões em Agbogbloshie e Dandora (2021)
Associação Brasileira da Indústria Têxtil (ABIT) – Dados sobre resíduos têxteis no Brasil (2023)
Convenção de Basileia – Controle de resíduos perigosos (1989)
Banco Mundial – What a Waste 2.0 (2018)
Organização Internacional do Trabalho – Condições de trabalho em lixões informais (2022)
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